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Département des littératures de langue française
2104-3272
Sens public

PARTE 1 “Segundo turno pela honra”

7 de outubro de 2018: implosão da democracia brasileira. Desde o dia seguinte, ficou-se sabendo da morte a facadas do célebre mestre de capoeira e compositor, mais conhecido como Moa do Katendê (Romualdo Rosário da Costa, de 63 anos) após declarar oposição ao vencedor dessas eleições. Quais são os motivos da submissão da maioria a um programa político contrário a seus próprios interesses? Durante os anos de agonia do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula e Dilma, os brasileiros que são pela democracia estiveram sempre atrasados para o combate. Políticos de todos os lados e partidos brincaram com fogo ao se meter em extenuantes jogos de papéis protagonizados pelos partidos, persuadidos de que eram a encarnação da sociedade política. Lula foi o bode expiatório designado pelo ativismo de juízes que deram espaço a um político sem escrúpulos que alimenta os preconceitos mais crus para estabelecer sua autoridade. A indiferença dos mais ricos à revelia do destino de seus concidadãos e o ressentimento da maioria dos eleitores face à repugnância das elites contam muito na vitória de Jair Bolsonaro. A abdicação da democracia no Brasil abre um novo capítulo da história agitada desse país-continente.

Segundo turno pela honra

No dia seguinte de um primeiro turno catastrófico, Fernando Haddad improvisa um papel impossível. Ser o porta-voz de um projeto social num país de desigualdades gritantes, o candidato do PT calou-se abandonando o debate sobre as principais reformas políticas por ainda esperar ganhar esta eleição. Apresentando um projeto repressivo e antissocial, seu adversário ganhou tudo. Ele quer diminuir as despesas públicas e armar a população1! Triunfo total para os que tinham dúvidas de uma revanche do Partido dos Trabalhadores. Presidente de 2012 a 2016, Dilma Roussef, não foi nem ao menos reeleita ao congresso. A obstinação do PT a brandir a figura de um Lula, ultrajado pelos tribunais, simboliza a incapacidade do partido em escutar uma sociedade que ele mesmo ajudou a transformar a partir de 2002. Como ganhar essas eleições? Aos ricos brasileiros que rejeitam arduamente todo compromisso social, o simplismo radical de Jair Bolsonaro cria uma forma de apartheid isolando os privilegiados da grande massa da população abandonada ao sabor das periferias urbanas e rurais. Com exceção do Nordeste, onde a miséria só teve fim com os programas sociais aplicados durante o governo Lula, os evangélicos conseguiram convencer massivamente pelo voto ao candidato que pretende reprimir a delinquência. Nacionalmente com mais de 46% de votos no primeiro turno, ele visa os 60% no segundo. Essa é a combinação antinatural à constituição brasileira, comprometida com práticas dúbias de governantes e de magistrados. Bolsonaro defere o golpe de misericórdia: aclamar decisões arbitrárias, e já prevê as irregularidades de seus seguidores. Prolifera declarações racistas e misóginas, e sua apologia à violência é incompatível com um mandato público num Estado de Direito. Ele declarou, em agosto, desejar a retirada do Brasil da ONU (Poroger 2018a). Ele não se pronunciou a fim de moderar seus seguidores depois de atos de violência que se seguiram ao voto em diversos lugares. Quem se ofusca? A máquina está lançada, como pará-la?

Haddad conhece os limites da constituição – mas, o que fazer? Defendê-la. A reforma fiscal é impossível? Haddad fala, então, em isentar a exígua classe média e se engaja pela ortodoxia orçamentária. Bolsonaro acredita que fará a mesma coisa imediatamente. Ele galvanizou as camadas sociais mais privilegiadas do país propondo um imposto uniforme de 20%, o que poderia pesar sobre as rendas intermediárias. Isso não o impediu de afirmar que seu adversário roubou seu projeto de isenção fiscal. Melhor, agora que os ricos já foram conquistados, ele volta a se declarar favorável às privatizações, puxando o tapete de seu adversário, e fala em manter os programas de ajuda social às famílias. A vitória vale a reviravolta. Esta que não é nada comparada à guinada que se permite, em 2016, o então vice-presidente Michel Temer: o benefício da traição do pacto de 2014 entre o PT e o PMDB – o partido do Movimento Democrático Brasileiro. O fiasco do seu governo preparou o terreno para Bolsonaro. Gravemente ferido por uma facada um mês antes do escrutínio, o demagogo viu os outros candidatos apresentar-lhe solidariedade, embora não esperasse tanto. Continuou sem reduzir em nada suas provocações, transmitidas por uma falsa propaganda – as famosas fake news – no WhatsApp2.

No Brasil, as eleições permitem a algumas famílias dotadas de enormes domínios de deter por muito tempo o controle das instituições3. Pouco depois da transferência da capital de Rio de Janeiro à Brasília, a ditadura militar bloqueou por vinte anos toda a esperança democrática – o que massacrou a cidadania. Com o retorno do parlamentarismo sob o controle dos caciques políticos, um compromisso social pareceu se esboçar: os privilegiados veriam seus bens santificados em troca de programas de equipamentos estruturais de saúde pública, de moradia, de transportes e de uma melhor educação para todos. Esse pacto está em farelos. Se o país abranda seus esforços de promoção social4, suas instituições perdem seus próprios sentidos e deixam a população desamparada e sem perspectivas. Polarizando a campanha na personalidade de Lula ao invés de lançar um grande plebiscito sobre um programa inclusivo de governo, o PT favoreceu involuntariamente o discurso demagógico de seu adversário e se viu proibido de direcionar o debate sobre questões de justiça social, ao passo que a desigualdade atingiu o pior nível da história5 e que ninguém quer assumir os gastos do Estado.

Haddad é sugado por essa onda deflacionista que fez dos pobres tão inúteis segundo o novo homem forte do Brasil, abertamente racista, homofóbico e misógino – mesmo se ele posa de defensor da família cristã. Bolsonaro se associou a um militar aposentado que se insurge contra as aquisições sociais e a um economista desejoso de diminuir as funções do Estado (Gaspar 2018), seus dois filhos foram brilhantemente eleitos logo no primeiro turno… Os que mais se beneficiaram de um período de crescimento único e da alta dos bens imobiliários ficam, assim, certos de que seus patrimônios não terão impostos a pagar. O ideal consumista da classe média exclui agora mais que nunca todo e qualquer compromisso entre as classes sociais. Se a dívida pública é muito alta, os beneficiários dos programas sociais hão de pagar caro! Esse discurso é inadmissível na televisão e Bolsonaro se recusa a encontrar seu adversário para um debate, o que é bem mais seguro.

Nas regiões com maior índice de desenvolvimento, os votos pelo antigo militar foram de cerca de 60%, nas mais pobres de 18% (Fohla 2018a). Esse critério vale igualmente para cada Estado, onde as zonas ricas votam em Bolsonaro: essa eleição estabelece a carta mental da extrema desigualdade e de uma situação paralisada entre as várias nações brasileiras que se olham fixamente. Santa Catarina é o Estado brasileiro mais rico e mais produtivo do país, por habitante, (Fohla 2018b)! Trata-se de proteger um cofre-forte e um paraíso turístico onde os privilegiados querem ser protegidos de seus concidadãos – daí o colapso da direita tradicional, para o paternalismo demodê.

Uma corrida desesperada se estabelece por Haddad, assegurada da neutralidade do Estado-Maior, desejoso de ver os católicos se posicionarem. Sobre este plano, igualmente, tudo está equilibrado. Apesar da obstinação do Papa em comparar o desejo de abortar um feto com uma anomalia genética à procura de um assassino contratado para resolver o problema (“O Papa Francisco compara o aborto ao mesmo que contratar um matador de aluguel”, 2018), a Conferência dos Bispos Brasileiros diz que um católico escolherá o candidato que rejeita a violência e promove a democracia6. Isso basta? Com quase 42% de intenções de voto, Haddad se encontra em posição desfavorável: a base do PT e a população do Nordeste votam nele. Mas, a rejeição do PT é generalizada em todos os lugares e a extrema-direita se aproveitou da sucessão de crises no Brasil. Esses anos valem um século: o voto terá como causa o discurso então dominante segundo o qual a democratização brasileira estava em curso, mesmo se sua característica recente, o tamanho do país e o baixo nível de escolaridade da população, exigia indulgência. Essa proposta se desculpava da pouca solidariedade dos nativos e também se endereçava aos pobres impacientes de ver seus direitos respeitados. De fato, os detentores do poder respiram: o voto dos indecisos não inverterá o resultado.

Para tanto, é preciso um choque moral: e se os brasileiros fossem tomados por um medo de uma guerra civil abrindo as portas a uma violência incontrolável? Haddad se apresenta enquanto bom esposo e homem culto, tenta mostrar sua música pessoal em um debate extremamente ideológico – mas, quem quer um Brasil com um governo que não represente a maioria? Os partidos tradicionais rejeitam todo apoio ao Partido dos Trabalhadores, aceitando antecipadamente a vitória de Bolsonaro. Os dois homens chave de uma coalizão democrática são, para o PT, Jaques Wagner, velho companheiro do lulismo que esteve ao lado de Dilma por ocasião do impeachment, e Ciro Gomes, cuja campanha do primeiro turno teve certo êxito. Ele conta com uma especial popularidade no Nordeste, onde conduziu sua carreira. Seus eleitores, 12% no plano nacional, desejam um compromisso de classe e rejeitam as exclusões sociais e os guetos. Ciro Gomes triunfa em seu feudo no Ceará, onde o antigo militar Bolsonaro obtem 21% dos votos, pontuação mais fraca entre os Estados do Brasil.

PARTE 2 “Demo-krach”

O Brasil realmente votou em toda liberdade por um ditador especialmente cruel com as famílias empobrecidas por anos de crise e que uma política de redução desenfreada da dívida pública não há de poupar? Naturalmente: é justamente o que é mais importante apreender nesse momento tão grave. As classes mais ricas do país podem sorrir! As ambições e os rancores da classe média protegem seu interesse financeiro. Se a mídia não se deixa comover nem um pouco pelas liberdades e não clama à explosão democrática, é porque seguem o que seus assinantes decidiram. No Nordeste, de onde milhões de pessoas saíram da miséria com a democratização do país e dos programas de Lula, existe uma resistência à onda de direita: esses eleitores reduzem o ostracismo que bloqueia toda a evolução nas zonas de economia precária. Num contexto de intensificação da violência, as estradas de êxodo interno, para uma cidade mais rica, serão abertas em busca de empregos ou serviços que exigem pouca qualificação, ou de se empregar em tarefas mal remuneradas em um agro-desflorestamento predatório.

Os juízes da Suprema Corte destruíram o prestígio do Partido dos Trabalhadores, sem nunca censurar as ações anti-sociais do poder. A postura engajada dos magistrados da operação anticorrupção Lava-Jato, pilotada pelo juiz Sérgio Moro, desacreditou as instituições, em especial o Congresso. A união foi feita entre os empresários liberais e as igrejas evangélicas, estas que condenam tudo de uma vez: a corrupção, a imoralidade, o laxismo, etc. Isso vai de encontro ao discurso retrógrado sobre a família e a submissão religiosa. O desespero dos desempregados e dos diaristas se encarrega do resto: a confiança no Estado-Maior e em seus representantes desapareceu, o número de militares que entram no Congresso é uma surpresa para o Estado-Maior em si mesmo, e se Haddad esperava muito de um debate face à face com Bolsonaro, este se esquiva com atestados médicos para fugir dos debates – estratégia bem sucedida no primeiro turno.

Esse resultado se produziu em uma aparente liberdade, mas como explica Jessé Souza, os eleitores são manipulados há décadas Souza (2018b). Seus votos carregam em si a marca de um poder social que divide a população e a expõe a contradições insolúveis. Depois de anos de crise e de bombardeamento midiático a respeito da corrupção do Partido dos Trabalhadores e de seu chefe aprisionado, seu novo candidato quase desconhecido reuniu quase um terço dos eleitores: poderia ele esperar melhor que isso? Para o cenáculo empresarial, a eleição era um referendum sobre um único ponto: você ainda quer um Brasil corrupto? Se essa questão não era o suficiente para bem votar, veja aqui seus adendos: seria a crise uma consequência dos governos do PT, sim ou não? E a violência não seria sua cria mais vigorosa? Esse tipo de proposta convence a evitar todo tipo de retorno ao passado e, como os parlamentares do centro são pouco populares, apoia-se Bolsonaro, apresentando-se contra todas as evidências como que estrangeiro à organização. Seus eleitores foram ludibriados.

Não se pode acreditar nesse suicídio de uma democracia, acredita-se que os eleitores não escolheriam o ódio social. Em um país onde cada um vigia as atitudes do outro e se quer cortês, como se pode desejar a pior das repressões? Amanhã, de que valerá a elegância depois de escolher a violência? À esquerda, ninguém viu nada chegar: o que deveria ter nos preocupado ainda mais. Depois da reviravolta das alianças de 2016 e o impeachment da presidenta Dilma Roussef, tinha-se constatado a ausência de manifestações populares e a fraqueza de proposições alternativas: Dilma pensava que eles não ousariam, pois seus eleitores viam a torpeza de seus sucessores como razões esperadas. Sabia-se que o PT estava atrasado sobre os acontecimentos e que ele não tinha sabido convocar a população7. As hesitações do PT causou preocupações ao lançar uma campanha do porvir ao invés de nostálgica do Lulismo. A imprensa acolheu calmamente o poderoso crescimento da extrema-direita nas sondagens, mas, da mesma forma que na França com o governo de Jean-Marie Le Pen, as sondagens subestimaram as intenções de voto em favor de Bolsonaro.

O último debate televisivo da Globo do primeiro turno mostrava candidatos falando educadamente no vácuo, na ausência de Jair Bolsonaro, dispensado por razões médicas. Foi um momento surrealista que ridiculariza o processo eleitoral: o candidato da extrema-direita se fez entrevistar sozinho no mesmo horário em um canal evangélico, a Record. A artimanha bem sucedida para o antigo militar. Tornado o arauto sem escrúpulos de um povo indignado com as instituições e os políticos, ele lidera as margens reacionárias dos movimentos religiosos e o empresariado mais ganancioso, próspero sobre as ruínas do governo conservador de Temer, que foi uma hecatombe de demissões de ministros corruptos e de revelações chocantes. Esse cinismo é conveniente: as instituições se deixam infringir sem reagir – nem às violências, nem à avalanche de fake news difundidas no WhatsApp, nem à entrevista exclusiva na rede Record… Essa eleição foi, assim, literalmente roubada do povo brasileiro, inicialmente impedido pelo poder judiciário de absolver Lula por um voto que o limparia politicamente das acusações e da obstinação judiciária das quais ele foi alvo. Vários de seus adversários que enriqueceram explicitamente por meios fraudulentos, num sistema afogado desde o princípio pela corrupção, foram poupados. Toda lealdade desapareceu do campo político e é em vão que Haddad se atém.

E entretanto, os brasileiros adoram seu país, se colocarmos de lado algumas populações específicas: no caso dos descendentes do povo presente antes da chegada dos europeus, a nação afetiva local, ligada a uma pequena comunidade afetiva e de inclusão aldeã. O que se passa em Brasília é antigo: a gente se informa para proteger os direitos ameaçados e que riscam de ser varridos amanhã se as ONGs forem impedidas de trabalhar. No outro extremo do espectro, pega-se um vôo para Miami, Londres ou Suíça: o que se passa no coração do Brasil não conta em nada, o importante é a família e os benefícios. O patriotismo é, dessa forma, a prerrogativa da massa e da classe média com problemas em se afirmar. Mas, esse amor pelo país não se versa sobre os valores sociais: o que, segundo as pessoas, passa por diversas paisagem, indo da civilidade à gastronomia, ao sentimento de participar de uma sociedade multicultural ou simplesmente de gozar da própria fortuna ao abrigo de convulsões políticas. Os dois segmentos centrais da sociedade brasileira vê seus membros viverem numa tensão permanente: alguns subsistem trabalhando no setor informal da economia que a crise inflou, outros querem se distinguir dos primeiros por seus trabalhos e pela ascensão social de suas crianças. Os brasileiros ricos vivem como uma nação à parte do povo, o que impõe à burguesia o desafio constante de se diferenciar do “povão”. Daí a dependência das elites por riqueza, e seu gosto peculiar de associar despesas exageradas por estar na modernidade à costumes vindos de um passado idealizado. De um lado, o povo expressa uma forte ligação e enraizamento ao lugar onde vive: a gente escuta em todo lugar que se trata do paraíso na Terra e que ele não deve mudar. A comiseração proveniente de uma participação religiosa cai bem aos miseráveis, mas os políticos vêem esses últimos apenas sob a forma de bandos urbanos ou retardados do campo. A campanha de Jair Bolsonaro foi nutrida de um coquetel de desconfianças e de uma demanda de proteção a qual os partidos tradicionais são incapazes de satisfazer, o que não o impediu de idealizar uma pátria idílica cujos políticos de todas as tendências privaram os brasileiros: todos corruptos8.

O encontro do Brasil com a democracia resta uma história indecisa. Entre a situação de todos para quem o “se virar” é uma obrigação permanente, e esses privilegiados escorados em seus passes livres, que eles crêem naturais, como demonstrar a relação entre a democracia e a equidade? Oficialmente, o debate sobre o modelo político9 está acabado, mas as personalidades conscientes das torpezas institucionais não tem a massa crítica sobre o que vai ser a sociedade numa perspectiva de inclusão. Os brasileiros abertos aos outros e progressistas oscilam entre lealdade ao legalismo mais sincero, mesmo se seus procedimentos burocráticos os repelem, e opções pessoais alternativas: as viagens ou o esporte são as mais usadas, algumas se cultivam passionalmente. Esses aí sonhariam com um Brasil democrático sem pôr em dúvida o melhoramento das classe populares, que aterroriza os privilegiados. Mas, eles não estão na corrida para o poder. O Brasil resta fracamente politizado, um dos elementos cruciais da situação atual.

Por essas ausências na televisão, com o pretexto de sua hospitalização, Bolsonaro queria impedir a formação de uma frente comum dos outros candidatos contra suas ideias, e isso funcionou. Ciro Gomes, em boa forma, advogou por experiências locais de sucesso, para suas realizações a serviço da educação e da pequena infância, e indicou as vias de uma reconciliação entre brasileiros, e isso foi assumido em uníssono. Mas, vários partidos menores já aderiram o campo de Bolsonaro, apesar de suas declarações intoleráveis: racistas, sexistas, bélicas et repressivas, fascistas, incompatíveis com um Estado de direito. O limiar se encontrava entre esse projeto garantido de dividir os brasileiros e o do governador Alckmin, liberal no verdadeiro sentido do termo, favorável a investimentos privados e às privatizações. Mas, os eleitores do PSDB o deixaram pela extrema-direita: com menos de 5% das vozes (contra 40% da candidatura anterior), o partido explodiu, dividindo-se entre os dois blocos do segundo turno, deflagrando a divisão radical da sociedade. Os liberais tradicionais são reféns do extremismo que eles nutriram e do qual julgam o PT responsável… Não existe uma frente anti-Bolsonaro.

Portanto, não resta nada de uma participação afetiva qualquer das elites às emoções patrióticas. Os mais abastados dos brasileiros tem uma vida internacional e os bens espalhados em diversos países, estudam de bom grado no estrangeiro e lá se casam. Preferem pagar impostos aos Estados Unidos ou à Suíça que ao próprio país e se autodenominam cosmopolitas por não olhar os brasileiros comuns. A nação está quebrada de tanto que a sociedade é incapaz de se reconstruir contra os próprios medos. Para isto, é preciso uma vontade de justica e uma solidariedade social de que tanto carecem. O Brasil produz uma enxurrada de discursos que se referem a decência, a manutenção de uma pureza moral ou religiosa, a uma integridade pessoal. Mas, se a lealdade é um valor, as práticas se distanciam. Pode-se dizer que foi Deus, a economia do mercado, a cidadania participativa, a seriedade, a diferença, a memória da ditadura e os torturados, os povos indígenas, o trabalho e a educação… Na realidade, cada grupo milita puxando a brasa para a própria sardinha e fantasia uma homogeneidade imaginária. Enquanto que a pluralidade das referências e das filiações nos protegem de exclusivismos nacionalistas, a negação do Outro está em tudo. Os jovens brasileiros são divididos entre a tentação de um êxito financeiro egoísta e um compromisso martirizante pelo Bem, muitas vezes captado pelos evangélicos. O ódio ao Outro pode se materializar historicamente contra os estrangeiros ou os que entendemos facilmente como estrangeiros. Mas, no Brasil só se pode odiar seu próprio compatriota – daí o clipe da campanha que direciona aos parlamentares e aos magistrados um ódio do qual, na realidade, o povo é alvo. Presencia-se um crescimento do fascismo, cujos acentos nacionalistas logo se prevalecem do controle do Estado sobre o petróleo para garantir a autarquia patriótica. O Brasil bem que poderia experimentar um chavismo de direita.

Principal protagonista da campanha, Jair Bolsonaro tinha desistido da última emissão televisiva que antecedeu o primeiro turno e seguia nessa linha às vésperas do segundo. Populista autoritário de tipo fascista, reivindica coalizão com os piores horrores do século XX e afirma que “o Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, uma versão do “Deutschland uber alles / Gott mit uns” dos nazistas. Suas provocações vão tão longe que ele não poderia nem mesmo controlar aqueles cuja violência delas se inspiram, o que explicaria a militarização da manutenção da ordem. Ele vai à frente dos que, pertencendo a não importa qual grupo social, duvidam da democracia e tendem a um governo austero para os oprimidos. Liderando as margens reacionárias dos movimentos religiosos e o empresariado mais ganancioso, atirando uma certa classe média consternada pelos escândalos (daí seu avanço em Brasília). Apesar de seu conselheiro econômico ultraliberal, seguindo os passo dos Chicago Boys que governaram o Chili de Pinochet (Gaspar, 2018), não se diria antiestatista. Muitos evangélicos do país unem-se a seu projeto, pois os valores da democracia são menos capitais para eles que os da família e das comunidades de base, que votam por uma sociedade ordenada. Seu programa de segurança será oneroso, e o Brasil está endividado10. Assim, Bolsonaro vai erradicar o Estado social brasileiro desejado pelo Partido dos Trabalhadores de Lula e que pode funcionar tão bem que o crescimento permitiria financiá-lo sem aumentar os impostos, tanto que ele enriqueceria ainda mais os ricos através das taxas sobre os bens do Tesouro11.

O paradoxo maior dessa crise profunda emerge de um permanente não dito, o de quem coloca em concorrência os indivíduos e grupos em situações de partida extremamente desiguais. Apenas o PT criou cotas de acesso às universidades para os grupos marginalizados não apenas por uma questão de justiça, qualquer que seja o critério que queiramos aplicar. O Banco Mundial considera que, dessa maneira, as qualificações pessoais são uma garantia de futuro tanto para os indivíduos quanto para as nações, numa época de rápida transformação das sociedades. Para enquadrar esse processo e evitar a disrupção, ainda é necessário que um consenso se manifeste em favor da inclusão social, da solidariedade meio a uma entidade territorial mais abrangente, e uma profissionalização generalizada das populações no lugar em que se encontram: o empoderamento das comunidades de base seria uma peça fundamental em um país como o Brasil, onde as diferenças regionais e de modo de vida são tão profundas. Toda regressão sobre essa via será fatal a milhões de pessoas e há de alimentar medos irracionais.

PARTE 3 “Do clientelismo à consumação, a abdicação do político”

Diferentemente das extremas-direitas europeias, no Brasil não se pode vilipendiar as minorias estrangeiras. Em revanche, as populações que o desenvolvimento do país rejeitou à margem são severamente estigmatizadas. Distanciar-se geograficamente dos lares urbanos ou instalar-se nas favelas desconhecidas lhes permite, por vezes, ter uma vida localmente autônoma, e de lá exibir uma verdadeira dignidade em detrimento da pobreza. Mas, as populações ligadas às explorações agrícolas ou aos serviços urbanos que o crescimento demográfico multiplicou são desprezadas, sendo pouco expostas à influência das orientações mais ativas da economia nacional e são alvo de preconceitos intoleráveis. Esse Brasil dos excluídos vive como uma fatalidade às transformações das quais participa de maneira meramente superficial. Os telefones estão conectados ao WhatsApp, mas como melhorar as condições de vida? Depende-se das classes mais favorecidas para quem é logico que povo esteja a seu serviço, ou ofertas de empregos não negociáveis e facilmente revogáveis. Como sustentar um regime democrático ao qual a maioria deve extorquir as ajudas sociais, lutar contra a alta das contas mais diversas e enviar seus filhos a estudar sem nenhuma garantia de uma verdadeira qualificação? O sentimento de espoliação aqui é determinante para explicar a conversão do desprezo contra os parlamentares em apoio em apoio a Bolsonaro. A reflexão de Jessé Souza é fundamental para expor a estrutura dessa amálgama e identificar suas antigas raízes: “ele (Bolsonaro) se dissimula em virtudes morais e pureza de sentimento o que não passa de submissão aos imperativos e interesses da elite dominante”. Segue-se, aqui, a tradução de algumas das páginas essenciais de sua obra premonitória, “A Elite do Atraso” (Souza 2017). Souza opera uma leitura crítica dos conceitos culturalistas derivados de Max Weber ou Franz Boas, cuja adoção no Brasil por personalidades tão centrais quanto Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda naturalizaram as representações tendenciosas, maquiando um espírito de homem cordial o que era uma psicologia das personalidades marcadas pela submissão esclavagista, atribuindo aos vestígios do colonialismo o que era ganância dos dominadores. Souza se inspira, sobretudo, das teses de Gramsci, Sartre, Bourdieu e Charles Taylor para explicar como as representações morais favorecem a colonização pelas elites do espírito pequeno burguês. São componentes do fascismo e do espírito reacionário que desacredita há muito tempo as reivindicações populares, colonizando a classe intelectual a serviço da elite, instrumentalizando os sentimentos nacionalistas e o culto à força.

Na verdade, afora as épocas históricas que lograram organizar as classes populares ou as camadas médias por algum período breve de tempo, a única classe consciente de seus interesses entre nós foi e é ainda a ínfima elite do dinheiro. Foi ela que construiu esquemas gigantescos de distorção sistemática da realidade, como os que estamos reconstruindo neste livro, apenas para manter o padrão de rapina selvagem do trabalho de todos para seus bolsos. Foi ela, ao fim e ao cabo, que, com satânica inteligência e clarividência de seus melhores interesses de classe, percebeu que o assalto ao bolso coletivo e ao trabalho alheio só poderia se dar pela colonização da capacidade de reflexão da classe média.

A tese do populismo e do patrimonialismo servem, precisamente, como uma luva para os interesses dessa elite. Elas servem primeiro para tornar invisível a ação predatória de um mercado desregulado como o nosso. Depois, para culpar o Estado e suas elites corruptas – especialmente de esquerda – de tudo que aconteça sempre que se faça necessário. A responsabilidade da elite e de seus instrumentos como a mídia ficam também invisíveis e não são chamados nunca à responsabilidade. Depois, eles deslegitimam as demandas populares como demagogia e populismo. Hoje em dia, essas são as duas ideias mais repetidas por todos os jornais e canais de televisão. Elas estão hoje, com gradações diversas de clareza, na cabeça de todo brasileiro.

Como isso foi possível? Como tantos foram e ainda são enganados por tão poucos? Ora, a habilidade das teorias explicativas dominantes descritas acima reside, precisamente, no fato de serem aparentemente críticas, ou seja, elas parecem críticas, mas estão sistematizando e conferindo prestígio às ideias mais conservadoras. Elas são repetidas, inclusive, por intelectuais refinados da esquerda. O patrimonialismo aponta o dedo acusador apenas às elites aparentes, ligadas ao Estado, mas que no fundo só fazem o trabalho sujo da verdadeira elite do dinheiro, que manda no mercado e permanece invisível.

O populismo, por sua vez, se disfarça de leitura crítica da manipulação das massas, aparentemente em favor de uma organização consciente das massas, por elas mesmas, assumindo o controle do próprio destino. A grande fraude aqui é esconder o principal: que as massas lutam com as armas dos mais frágeis tendo toda a organização institucionalizada da violência simbólica e da violência física do Estado e do mercado contra elas. Essa é a fragilidade de seus líderes carismáticos também. Eles têm que andar na corda bamba dos interesses contraditórios e dos inúmeros compromissos, já que o que as massas podem sonhar é apenas uma fatia menor do bolo. Ainda assim, isso só acontece raramente entre nós.

O tema da esfera pública colonizada é fundamental para nosso argumento, posto que foi e é o lócus onde a classe média é arregimentada para os interesses da elite do dinheiro. Tudo acontece, nessa esfera da informação seletiva e da opinião instrumentalizada, como se o mundo fosse um prolongamento das fantasias e da autoimagem da classe média. A decência e a virtude passam a ser percebidas dentro do estreito contexto da moralidade dessa classe. Para uma classe que explora as outras abaixo dela sob formas cruéis e humilhantes, moralidade não pode ser, por exemplo, o tratamento igualitário dos outros seres humanos, ou o comprometimento com chances e oportunidade para todos. Ora, em um contexto de sociedades influenciadas pelo cristianismo, moralidade deveria ser, antes de tudo, igualdade e fraternidade.

Mas não é essa a moralidade que foi cevada pela grande imprensa e por nossos intelectuais mais influentes. “Moralidade” significa, aqui, unicamente se indignar com as falcatruas – sempre seletivas e cuidadosamente selecionadas pela imprensa – do sistema político, de resto montado para ser corrupto, já que montado para ser comprado pelo dinheiro da elite do dinheiro. A classe média pode ganhar sua “boa consciência”, mesmo humilhando e explorando os mais frágeis, apenas se escandalizando com a suposta imoralidade estatal.

Nesse sentido, a elite do dinheiro e seus comandados na vida intelectual e na imprensa passam a possuir o coração e a mente da classe média e podem recorrer a esse capital na luta política sempre que necessário. Como as classes populares são menos influenciáveis por esse tipo de mecanismo – protegidas pelo seu racionalismo prático –, a vida política do Brasil, desde então, é dominada por golpes de Estado movidos pela elite do dinheiro, com o apoio da imprensa e da base social da classe média, sempre que a soberania popular ameaçar ou efetivar, por pouco que seja, interesses das classes populares. Já nos anos 1950, o embate se dá entre a elite do dinheiro aliado à imprensa que ela, elite do dinheiro, não só construiu materialmente, mas também lhe deu o discurso simbólico que a caracteriza. O embate desigual se deu, já nessa época, como se dá ainda hoje, entre a elite do dinheiro e a fração conservadora dominante na classe média como sua “base popular”, contra as classes populares e suas lideranças. Todo o esquema que operou no recente “golpeachment” de 2016 já estava armado desde o segundo governo Vargas.

Muito especialmente o tema da corrupção seletiva passa a ser usado sistematicamente já contra Getúlio Vargas com retumbante sucesso. Carlos Lacerda e toda a mídia conservadora cerram fileiras e provocam comoção popular já se utilizando de dispositivos que hoje são conhecidos como pós-verdade, ou seja, a construção de versões sem prova com o intuito de produzir determinado efeito difamatório. Mesmo que a mentira se revele enquanto tal mais tarde, seu efeito destrutivo já foi realizado. O suicídio de Vargas a partir de comprovadas inverdades ditas contra ele mostra a eficácia do esquema. As ideias dominantes para a reprodução do elitismo brasileiro, como a do patrimonialismo que demoniza seletivamente o ocupante do Estado e a do populismo que demoniza as classes populares, não são apenas ensinadas nas escolas e nas universidades. Seu ensino nas universidades é importante pois confere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de universalidade e neutralidade objetiva, a essas visões muito particulares da vida social e política. Armadas dessa consagração do campo científico, elas passam a ter ainda mais peso na formação de uma opinião pública manipulada ao se transformarem em motes usados como arma política pela grande imprensa.

Dependendo do caso específico, às vezes temos a corrupção apenas do Estado, o patrimonialismo como mote principal, ou o populismo, o velho medo da ascensão das classes populares. Mas os dois estão sempre presentes. Afinal, essa é sua função enquanto mecanismo que sempre pode ser ativado ao sabor das circunstâncias: sempre que a regra democrática ferir o mandonismo e privatismo da elite do dinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a captura da classe média moralista e a estigmatização das classes populares e suas demandas. A esfera pública comprada é o dado decisivo de todo o processo. Por conta disso, sua análise é tão importante.

Mais ainda que a queda de Getúlio Vargas, foi o golpe de 64 que mostrou as entranhas e os perigos desse mecanismo. Nesse caso, o populismo foi mais importante que o mote do patrimonialismo e da corrupção. Ainda que ambos tenham andado de mãos dadas como sempre. Em um contexto de ebulição social e clamor por reformas de base que tornassem o país mais inclusivo, a acusação de populismo casa-se com a de comunismo e mobiliza as Forças Armadas chamadas pela imprensa e pela elite do dinheiro a desempenhar seu “papel constitucional”. A fração conservadora majoritária da classe média faz sua parte e confere a aparência de base popular do golpe. Como os golpes precisam ter a aparência de legalidade, as Forças Armadas desempenharam esse papel interpretando a seu modo dispositivos constitucionais. Mesma função exercida pelo aparelho jurídico-policial do Estado no golpe atual.

Foram mais de vinte anos de ditadura feroz e de aprofundamento da já abissal desigualdade brasileira. Desenvolveu-se um modelo econômico e social que beneficiou unicamente a elite do dinheiro, que ganhou novos parceiros internacionais na exploração de um mercado interno cativo e de pouca produtividade. A classe média, que somava no máximo 20% do país, tornou-se a consumidora dos automóveis e dos bens duráveis mais caros e de menor qualidade, na comparação internacional, que o país passou a produzir, relegando as classes populares ao arrocho salarial. O Brasil da elite do dinheiro realizou o seu ideal e se converteu em um país para 20% de sua população que era e ainda é o tamanho da classe média entre nós.

O golpe de 64 realiza na prática o acordo antipopular da elite e da classe média ao levar ao paroxismo a constituição de uma sociedade baseada no mais completo apartheid de classes. Passa a existir um mercado de produtos restritos para as classes do privilégio e outro mercado pior e mais precário para as classes populares. Além disso, também todos os serviços, inclusive os do Estado, passam a institucionalizar e separar a escola de classe média da escola dos pobres, hospital da classe média e hospital para pobres, bairros de classe média e bairros para pobres, e assim por diante.

Passam a subsistir dois países dentro do mesmo espaço, que o economista Edmar Bacha chamou de “Belíndia”, uma pequena Bélgica para os 20% de privilegiados e uma grande Índia empobrecida e carente para os 80% restantes. É possível agora ser de classe média e não mais compartilhar espaços sociais com as classes populares. O brasileiro de classe média passa a se ver efetivamente como um belga e só ver os “indianos”, em casa obedientes e domesticados, como os velhos escravos domésticos. Essa passa a ser a normalidade da vida social brasileira. (Souza 2017, :139‑44)

Essas reflexões entusiasmantes foram publicadas em 2017, e seu autor antevê a abordagem ideológica no sucesso de personalidades autoritárias. Ele dá ênfase sobre o revezamento de opinião que satura o espaço público de comentários obsequiosos e ruinam toda possibilidade real de debate para uma sociedade brasileira inclusiva. O mais impressionante continua a ser o fato de que esse modelo possa impregnar o eleitor comum que ninguém vem ameaçar e que, entretanto, vive numa fobia securitária e desconfia de toda pessoa que possa se aproximar. O sucesso bolseiro dos comerciantes de armas não é apenas uma metáfora. Uma vez apresentadas essas reflexões, restam mesmo assim algumas questões. A primeira é bem simples: como explicar que o grito de alerta contra o PT não suscitou uma renovação dos temas do partido para entender e aproveitar a nova situação e lançar uma campanha do porvir frente a um governo estagnado e retrógrado? O PT ignorou e contemplava sua obra como um capital mobilizável para retornar ao poder. Para além do PT, porque Ciro Gomes e os outros candidatos democráticos finalmente obtiveram apenas menos de 20% dos votos, deixando a metade do eleitorado se declarar por um aventureiro da repressão? Para além de correntes de pensamento, existe uma patologia coletiva: como as mulheres, os negros ou mestiços podem votar em alguém que os insulta sem nenhuma vergonha? Porque as gerações mais jovens dadas aos estudos não fizeram nada para se opor aos velhos que retém o país desde o golpe de Estado? Porque os que conheceram a ditadura em suas infâncias não reagiram às provocações? Como os jornalistas e classes intermediárias diplomadas não sinalizam mais oficialmente o risco iminente da censura e da opressão? Nenhuma greve espontânea, poucas declarações alarmistas, nenhum empresário para manifestar suas divergências com o resto da manada, é o mistério de uma apatia democrática embalada sob a embriaguez consumista. Fim da política.

Daí pensar no efeito das redes sociais sobre as quais cada um se descarrega sem agir, existe apenas um passo – mas, faltam os elementos de demonstração.12A ausência de liderança alternativa é um elemento crucial: em 1992, o Fórum Social Mundial teve seu máximo de repercussão depois de sua edição no Brasil. Ele foi organizado pelos eclesiásticos de esquerda, um tipo de mediador que desapareceu: somente Leonardo Boff ainda se expressa, com uma idade avançada, e sua influência reduzida. Não se diria nem mesmo que se trata da influência do dinheiro: muitos brasileiros não tem nem um pouco e as ajudas públicas ou os serviços públicos dos quais se beneficiam deveriam ter lhes protegido de um voto que fará vir ao poder personagens que cortarão os orçamentos públicos para se conciliar com Wall Street, de quem dependem as ajudas financeiras do governo…

Os acontecimentos no Brasil foram ritmados pelos judiciário e, de certa forma, pode-se considerar que Bolsonaro – portanto, sem problemas com o Estado de Direito – é mesmo a criatura deles. Existe alguma coisa que se apega ao regime peculiar da jurisprudência, que é de se estabelecer em função das interpretações do passado. É preciso uma energia particular para tirar dos princípios antigos interpretações inventivas. Tal como não foi o caso no Brasil, onde as garantias de transparência e de equidade processual, que figuram nos altos, favorecem a condenação explícita da classe política pela mídia. Esses mesmos princípios poderiam ter conduzido o STF a interromper o assédio a Lula: é mal visto de aprisionar aquele que foi o emblema maior da democracia brasileira. Aqui perdura uma visão obsoleta de punição onde um amplo debate histórico desemboca em uma melhor política.

E sobretudo, esse princípio de transparência que ligou os tribunais aos canais de TV – o quarto poder – deixou à sombra um poder tradicional, o militares, cujos chefes acompanharam de perto todos os episódios. Várias vezes, algumas patentes indicaram suas preferências pela ordem que lhes era conveniente. Os militares e os juízes são tudo menos transparentes com os cidadãos, enquanto que os políticos foram cotidianamente controlados. Sob a liderança de Bolsonaro, os militares serão o pilar do governo em par com os juízes conservadores. O Brasil deveria sair o mais rápido desse retrocesso. E o poder político está nas mãos de duas instituições mais hierárquicas que democráticas, o país risca de encorpar os pesadelos da ditadura, como os filmados por Felipe Poroger em 2014 em seu curta metragem “Enquanto o sangue coloria a noite, eu olhava as estrelas”. O cineasta acaba de publicar um longo comentário sobre o antissemitismo dos partidários de Bolsonaro. Ele é o retrato de como a ignorância e a falsificação histórica ainda nutre mais uma vez violências ruinosas (Poroger 2018c). Brasil é ainda o primeiro dos grandes Estados democráticos do mundo onde a brusca interrupção do crescimento se traduziria por uma ruptura política, permitindo a um governo de extrema direita de captar o essencial dos poderes em seu próprio benefício. Levando em conta os imensos recursos do país vendidos no mundo inteiro, essa situação não resulta de um choque exterior. A questão brasileira é a dificuldade de inscrever as relações interpessoais, marcadas pelo conformismo moral e os vínculos de dependência muito pouco questionados, numa perspectiva do porvir. Não será necessário muito tempo para saber se contra-poderes serão instalados ou se um regime repressivo suspende na prática as garantias oferecidas pela Constituição de 1988. Por ora, Jessé Souza lembra que o fascismo sempre brincou sobre as divisões internas às classes dominantes. Os responsáveis políticos devem resistir aos alarmes de um falso moralismo que opõe os pobres merecedores dos “maus” pobres.

Bibliografia

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  1. Às vésperas do 1° Turno, Ciro Gomes ressaltou o duplo aumento do fabricante de armas Taurus na Bolsa de Valores.↩︎

  2. O Jornal Estado de São Paulo publicou uma enquete sobre a presença das redes sociais de Bolsonaro no mês que precedeu as eleições (Toledo, 2018).↩︎

  3. Aliás, o Atlas Agropecuário do Brasil indica que os pequenos produtores, com reduzidas capacidades de investimentos, dispoem de 13% das terras, contra 28% dos grandes proprietários, e 12% dos exploradores entre 4 e 15 hectares. 27% das areas sao de parques nacionais, 15% são das alocações (IMAFLORA, 2017).↩︎

  4. Os indicadores do Banco Mundial situam o Brasil abaixo do México para a combinação de fatores entre saúde juvenil e educação, e os da Oxfam em matéria de investimentos pela igualdade é alarmante: se o Brasil estava no 39° lugar no ranking mundial em vista dos recentes esforços, sua classificação baixara nas próximas edições. Ver (Oxfam International and Development Finance International, 2018) et (Inmanin Bali, 2018).↩︎

  5. Em 2017, Thomas Piketty e sua equipe publicaram um relatório sobre as desigualdades mundiais e sublinhou a ausência de voluntariado fiscal no Brasil, com efetivamente apenas os 10% de lares mais ricos concentram 55% da renda do país e dispõe do essencial de seu capital. Ver a tradução de sua entrevista à Folha de São Paulo: (Piketty, 2017). Aqui o link com as tabelas relativos ao Brasil: (WID, 2017). Ver a apresentação geral do estudo internacional: (WID, 2018). Thomas Piketty reagiu a eleição ressaltando o risco considerável de regressão que põe à tona a vitória de Bolsonaro depois de uma previa de trinta anos nas políticas discriminatórias em vigor até a constituição de 1988 (Piketty, 2018). É preciso acabar com o veto dos senhores no Reino Unido e aos do Senado na França, sem os quais as reformas sociais de 1945 não teriam sido nunca existido. Hoje, o campo progressista recusa todo debate ambicioso sobre a democratização das instituições americanas, europeias e brasileiras. Não é, portanto, deixando aos nativistas e aos reacionários o monopólio da ruptura que se salvara a igualdade e a democracia.↩︎

  6. « Não podemos votar com o coração cheio de ódio, nem pensando que vamos mudar o Brasil de uma hora para outra : não existem salvadoresda pátria, mas uma democracia que precisa ser permanentemente construída. » (« CNBB pede apra catolicos votarem em candidatos favoraveis a democvracia e contra a violencia » 2018)↩︎

  7. Os sucessos eleitorais do Partido dos Trabalhadores, de Lula, permitiram um arranque económico e uma verdadeira modernização do país, cujos índices de desenvolvimento melhoraram significativamente, a exclusão das desigualdades de renda, sempre entre as mais elevadas do mundo. Durante as quatro ou cinco últimas décadas, os partidos políticos de direita mantiveram a baixa de taxas de impostos dos mais ricos, os quais não manifestam a mínima solidariedade nacional com seus concidadãos pobres, sobre quem um status de dependência pesa 150 anos depois do fim da escravidão.↩︎

  8. Clip de campanha difundido dia 12 de outubro de 2018 (Bolsonaro, 2018) retirado a pedido do Tribunal Superior.↩︎

  9. Entre os brasileiros, apenas menos de 60% da população votou pela democracia quando a crise centrada nos trâmites da corrupção chegou ao seu apogeu. Esse número sobe a quase 70% às vésperas das eleições (segundo o Datafolha, “69% dos brasileiros aprovam a democracia”, 2018). Tal informação está sujeita a interpretações e o sentido desse conceito se diferencia consideravelmente de uma pessoa a outra, mas os dados indicam que a democracia está fracamente enraizada e se torna uma opção dentre outras para muitos brasileiros: que representam 30% dos que não se sentem ligados à democracia.↩︎

  10. Para o maior proveito de seus credores, frequentemente, os brasileiros afortunados lucros enormes. Esse financiamento do Estado e especialmente oneroso. Ele resulta dos fracos impostos progressivos, se nos damos conta do fato que o imobiliário e tem os impostos deduzidos, que as fortunas familiares são transformadas em sociedades (não tributável na ausência de distribuição de renda) e que o imposto sobre as sucessões e modesto.↩︎

  11. O endividamento público devido significativamente à fraca progressão do imposto deu uma renda fantástica aos brasileiros que investiram em títulos do Tesouro Público e financiaram dessa forma suas compras imobiliárias. O trabalho de milhões de empregados financia imensas fortunas brasileiras. Thomas Piketty notou esse fenômeno que aflige todo observador, mas fica invisível para a maior parte dos brasileiros, que ignoram completamente esse fato.↩︎

  12. Outro artigo já mencionado no Estado (Toledo, 2018), ver Wormser (s. d.) e (s. d.).↩︎